A
Câmara, o Cachoeira e Helenilson: o erro do Legislativo Municipal
A Lei Municipal nº 2.501,
de 10 de junho de 2020 (D.O.M. de 17.06), alterou a 1.903/2003, para denominar
de Praça Helenilson Chaves “O logradouro público... situado na Avenida Mário Padre,
nas imediações do Bairro Góes Calmon, trecho compreendido do Espaço Cultural
Professor Josué de Souza Brandão até a ponte Miguel Calmon” (Art. 1º) e o “...do
Espaço Cultural Professor Josué de Souza Brandão até a ponte Góes Calmon, passa
a denominar-se Praça Rio Cachoeira”.
Para a Lei 1.903/2003, ”Praça
Rio Cachoeira” a hoje Helenilson Chaves e ”Largo das Garças” a atual Praça Rio
Cachoeira.
Resumo da ópera: a Rio
Cachoeira – e seus monumentos – (oriunda da Lei 1.903/2003) tornou-se Praça
Helenilson Chaves e o Largo das Garças desapareceu para dar lugar à Rio
Cachoeira.
De início cumpre saudar a
iniciativa da Câmara Municipal por homenagear Helenilson Chaves, dos mais
importantes filhos de Itabuna. A trajetória do homenageado dispensa qualquer restrição.
Não há voz que dela destoe – para muitos até tardia – aprovada por unanimidade
dos membros da Casa, razão por que, erros e acertos hão de ser a todos
tributados.
Imbuídos seus pares da
melhor das intenções, no entanto – assim o vemos – para agraciar Helenilson a
Câmara cometeu duas lamentáveis agressões: a primeira (o homenageado certamente
não admitiria), imperdoável, de substituir a denominação de Rio Cachoeira do anterior
logradouro; a segunda, a de minimizar a homenagem diante das opções de que
dispunha para mais engrandecer e visibilizar o homenageado.
No primeiro aspecto reduziu
o espaço que o vincula a um dos símbolos da existência de Itabuna: o rio em cujas margens se desenvolveu esta
pujante Rainha do Sul. A poucos metros o pioneiro Félix do Amor Divino edificou
a primeira moradia, ali no antigo Marimbeta/Abissínia/Conceição.
No particular de curso
d’água, o Cachoeira é sinônimo de Itabuna e, de tal forma associado ao
imaginário desta terra, inspira poemas, contos, crônicas, monografias, documentários
cinematográficos e fotográficos. Centelha e lira de romances, musa poética. Telmo
Padilha a ele dedicou uma obra, onde declama – em perfeita sintonia pessoana:
“O maior rio do mundo é o rio da minha cidade / porque é o rio da minha cidade”,
versos gravados na estela que ornava a praça. Outro de seus vates maiores, Cyro
de Mattos, lhe dedica loas. Não há quem escreva sobre Itabuna que não o
referencie.
Dimensiona, em si, o
sentimento do orgulho itabunense por seu majestoso rio, que faz a cidade
vivenciar beleza singular porque a ele atrelada. Sua mítica moldura e faz
respirar a alma de sua gente. É a expressão semiótica da cidade, onde centrados
todos os signos grapiúno-itabunenses em complexos de reciprocidade
significantes e– como o registraria Saussure – traduz a concentração dos
sistemas de comunicação social aqui existentes. Qualquer que seja indagado
sobre o que define Itabuna priorizará o Cachoeira. A praça – e os monumentos
que abrigava – a expressão do rio, lembrado na dimensão de sua importância por
quem a transitasse.
No segundo aspecto – podemos
afirmar – que Suas Excelências promoveram típica capitis diminutio em relação ao homenageado (e também o fizeram ao
levar a Rio Cachoeira para o antigo “Largo das Garças”), que não será nem
reconhecido através do CEP, porque não há endereço de destinatário de
correspondência ligado à praça, que tem por limites físicos o próprio rio e a
Avenida Mário Padre. Nela não há morador ou endereço comercial.
Os que saudamos a
iniciativa da homenagem, diante do que representa o homenageado – razão por que
o máximo que se lhe concedesse ainda seria pouco – temos que a Câmara Municipal
jogou fora oportunidade ímpar de marcar e repercutir com inaudita justiça muito
melhor do que o fez: bastava-lhe substituir a Princesa Isabel por AVENIDA HELENILSON CHAVES.
Um corredor urbano de
augusta dimensão, em pista dupla, que vai da Rótula Tancredo Neves na cabeceira
da ponte César Borges até o Paty e – atente o leitor para o mais importante – faz
cruzamento com a Avenida Manoel Chaves,
pai de Helenilson.
Lembrados em simbólica
simbiose, sinônimos de pioneirismo empreendedor, associados intimamente através
de avenidas de Itabuna, onde se fariam tão mais vivos no imaginário – assim
como o Cachoeira. Dois membros da mesma família (fato bissexto) interagindo no
plano estético urbano a vida comum de quem sempre teve por conduto o amor por
esta terra.
Não enxergaram Suas Excelências
a homenagem perfeita: pai e filho, que fizeram história nesta terra, como nomes
que – por destino – se cruzariam e se abraçariam na forma de avenidas.
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Publicado no Diário Bahia, 14 a 17 de agosto de 2020, nº 4.089, p. 5, edição
Síndrome de elefantes em busca do horizonte
Trazemos ao terreiro da pessoalidade tanto do que por aí há de gente, de sonhos, de pesadelos. Quando visitamos contemporâneos na idade percebemos que, de certa forma, há em nós uma unidade de conclusões em torno da vida, de vocação a destinos muitos não ansiados e impostos como missão definitiva e inexorável.
Estivemos com um destes anjos lançados à Terra, também escritor, caráter singular. Acolheu-nos com carinho e gentileza como se diante de membro da realeza britânica. E nos disse que partia para Minas, passar uns tempos. – Minas não há mais, caríssimo – já o dizia Carlos Drummond de Andrade. Mas, pelo menos – para ele, confessou – longe estaria durante o tempo em que lá permanecer daquilo que o leva a fugar desta Bahia de todos nós.
Tergiversamos em torno de muita coisa, como aproveitando o tempo que nos restava ali ou – a bem da verdade – o que efetivamente nos reste, enquanto permitido.
Deixei-o, tardezinha, com saudade de um papo de corpo presente enquanto pelas Gerais estiver, até porque não desenvolvemos virtudes como a telepatia ou a telecinesia para levar o prosear sob a égide da cevada ou do malte.
Chegando em casa folheei alguns textos de variadas obras suas buscando razões para deixar o centro de sua razão de escrever. Nada que nos convencesse, tanto o orgulho e a vaidade registrada.
Olhando em volta deixamos de lado as nuvens e pisando no chão rochoso da existência sentimos um vazio tipo não-sei-de-quê a nos chamar com um psiu quase inaudível. Atendemos ao chamado, fundamos cabeça no travesseiro e lançamos os pensares rumo ao horizonte. Em algum lugar-nenhum mostrado um cemitério de elefantes. Contestei o exibido, afirmando tratar-se de mito africano, nada mais. Por lá dizem que os elefantes quando pressentem o fim da existência se deslocam para se finarem solitários, como a não pretender dar trabalho a quem quer que seja, como costumamos cobrando ladainhas e quejandos naturais à espécie como sói ocorrer com a humana.
Sim, bem poderia ser isso! O dileto amigo muito provável que estivesse vivendo um instante de elefante em fim de vida. Mas, muito diversamente, não a buscar um cemitério alheio para nele lhe lançarem o corpo inerte, mas – invertendo a mítica – para escapar de um mais aprisionador que aquele aonde alguns palmos de fundura, largura e altura acolhe em definitivo o que fomos, precedido do direito de substituir o registro de nascimento pelo de óbito.
Sim, afinal nós, sapien sapiens, certamente aprendemos com o que vemos e ouvimos, dispondo da capacidade de refletir em torno. Talvez, sem o perceber que versamos, concluímos por ensaiar o mito dos elefantes não ao perceber a morte, mas a ausência de sentido para continuar existindo naquele lugar do qual nunca imaginamos um dia deixar, o que durante anos anteriores buscaríamos para viver últimos dias, como afirmávamos em rodas e tertúlias, um tanto casimirianos sem Abreu, mas muito de retorno aos palcos de folguedos e piculas da infância.
Natural, assim, que de visibilizarmos as evidencias de um conjunto de sinais passíveis de despertar insegurança e incerteza em relação ao imediato escapar nos soa como saída.
Mas algo a nos espantar. Muito certamente a certeza de que não nos falta só quem nos compreenda ou nos interprete, mas o horizonte.
Tanto que, quando vivenciando esta síndrome de elefantes em busca do horizonte, corremos para Minas, ainda que a dos versos de Drummond.
O
poder e a mesquinhez
Dos mais
pungentes contos da Literatura pátria “Os Ciganos”, de Sabóia Ribeiro (da obra
Rincões dos Frutos de Ouro – contos regionais da Bahia, de 1928, reeditado pela
Editus em 2005) por dimensionar a dor de um pai que
não pode ver o filho morto e assiste ao enterro de longe, como única forma de se fazer
presente.
A comovente
conclusão não deixa de transitar por entre as relações humanas em dimensão de
poder em nível de província, ali representado pelos interesses pessoais de um
delegado, e as agruras e sofrimentos deste ou daquele que se vê a tal
circunstância submetido.
No conto um
cigano causara prejuízo em negócio realizado e o bando a que pertence somente
pode novamente entrar no povoado, tempos depois, caso não trouxesse aquele, sob
pena de todos serem presos, o que é aceito pelo chefe dos zíngaros.
Em meio às
agruras por que passam seus integrantes uma em particular comove a localidade:
uma criancinha, de primeiros meses, que vai morrendo aos poucos sem que
qualquer das iniciativas para salvá-la, inclusive médicas, o consiga.
Registra Sabóia
o drama vivido por todos (ciganos e população) em torno do infante:
“Era um bebê languento, pobre ente mirrado,
costelas de fora, pele seca, e pregueada, em cujo rosto avultavam, de cada lado
da boca, como dois parêntesis, duas fortes rugas cavadas... O infante quase não
dava acordo de si, langue e flácido, frio, com alternativas de um pranto
choramingado, sentido.
Depois de alguns dias, era, já, em romaria, que a gente do
povoado, mulheres sobretudo, acorria à barraca, onde definhava o mísero. E lá
estava ele, nos maternos braços, cada vez mais entanguido, mais consunto e mumífeito,
esgargalhado, imóvel, menos os olhinhos, muito acesos, movendo-se como
procurando compreender algo, hipotérmico. E foi numa agonia surda,
imperceptível, sem convulsão, sem trejeito de face, sequer, que ele, enfim, se
extinguira.
A própria mãe não o sentiu, dando com o pequenino frio, bem
morto, no aconchego do colo.”
E todos foram
sepultá-lo, viventes de uma agonia que os atingira e levava-os à solidariedade
capaz de demonstrar a razão por que da existência humana arvorar-se superior.
No trajeto,
escondido num capão de mato, o cigano foi reconhecido e contra ele o delegado
deu ordem de prisão, depois de identificá-lo.
Só restou ao
“acobardado e trêmulo” articular:
“– Sou, inhor sim, patrão. Prender pode, inhor
sim, isto pode – mas deixe ver primeiro o anjinho que morreu... sou o pai dele...”.
Nenhum instante
de uma existência pode ser medido em sofrimento como aquele em que se pranteia
um amigo, um parente. E não é algo que se esvaia com a dolorosa separação com o
sepultar. Tudo permanece por dias, meses, quantos mais entre si viveram o que
se foi e os que ficam.
A sensibilidade
humana sempre cobrou respeito para com tais instantes. A civilização tratou de
desenvolver a cultura de enterrar seus mortos e de respeitá-los enquanto tal.
Até como um direito inalienável, universal. Religiões mesmo atribuíram o luto
como uma forma de lembrar aos demais a dor por que o que o veste passa.
Tudo nos vem à
baila diante do que lemos: com mandado expedido no dia da cerimônia de missa
pelo 7º dia de falecimento de Marisa Letícia – no qual consta até o nome da
falecida – audiência designada para ouvir Lula no próximo dia 15. Mantida,
apesar de requerimento da defesa por adiamento amparada nos fatos recentes.
Entre o poder
do delegado provinciano e o de um juiz que tem lado tudo fica explicado.
Deitados sob a mesma frondosa árvore da mesquinhez humana debocham do
semelhante. Esquecidos – se em algum tempo o tiveram – dos sentimentos que
marcam o homem como expressão da Humanidade.
E nada mais
triste que ser mesquinho exercitando o poder.
Entre
São Bento e São José
Em
Salvador da Bahia, nos idos dos 60, curso das reações ao regime ditatorial
imposto a partir do golpe de 1964 construindo o AI-5 de 1968, uma figura
tornou-se símbolo de proteção aos que enfrentavam o regime: Dom Jerônimo de Sá
Cavalcante, do Mosteiro de São Bento. Ali a fortaleza quando a repressão
policial partia para a degola e os restados espavoridos manifestantes – fugados
desde o Terreiro de Jesus, a Praça da Sé, a Rua da Misericórdia, a Rua Chile e a
Praça Castro Alves – alcançavam a Ladeira de São Bento e o beneditino abria os
grossos portões do mosteiro para receber os jovens estudantes e intelectuais
perseguidos como cães lazarentos.
Não
o instante de ouvir o canto gregoriano que enlevava suas celebrações, tampouco
as prédicas de D. Jerônimo. Em meio aos disparos (os muros ficaram marcados) os
portões do paraíso de D. Jerônimo tornavam-se o bastião salvador para os que conseguiam
escapar da truculência.
Não
afirmemos em torno do que pensava a ditadura em relação aos templos religiosos,
em especial os da Igreja Católica. Até porque não faltaria argumento aos que viam
em muitos de seus membros a defesa – através do golpe – dos ‘valores cristãos’
ameaçados pelo comunismo ateu. A própria Conferência Nacional dos Bispos do
Brasil-CNBB – como lembrou Fábio Konder Comparato em elegia a Dom Paulo
Evaristo Arns, pinçou uma declaração de 29 de maio de 1964, exaltando o golpe,
porque em relação “a marcha acelerada
do comunismo para a conquista do poder, as forças armadas acudiram em tempo, e
evitaram que se consumasse a implantação do regime bolchevista em nossa terra”.
Afinal,
nem todos pensavam e agiam como D. Hélder Câmara, Dom Jerônimo, D. Paulo
Evaristo Arns.
Tempos
terríveis, aqueles. Mas nunca vimos ou conhecimento tivemos de tentativa de
invasão ao Mosteiro de São Bento, em Salvador, além da aproximação às
‘muralhas’ da instituição religiosa. Cercado, sim; invadido ou ocupado, não.
Acompanhamos
a recente ocupação da Igreja São José, no Rio de Janeiro por forças policiais
que reprimiam servidores em mobilização por receber seus salários.
O
El Pais, de 07.12.2016, registrou: “Os policiais chegaram a usar a Igreja de São José, a
poucos metros da Assembleia, como ponto de tiro. Agentes foram flagrados nas
sacadas do templo atirando diretamente contra a multidão”.
Os
fatos repetem-se nas circunstâncias que levam o instante às semelhanças entre
um e outro tempo histórico – ditadura distinta na fórmula que as impôs – onde a
repressão caldeia o café nosso de cada dia.
Nada
a acrescentar. Fica-nos a reflexão da barafunda em que se tornou esta terra brasilis. A invasão e ocupação de
templos sinalizam o extremo a que estamos chegando.
Com
singular detalhe: falta a proteção de D. Jerônimo do Mosteiro de São Bento de
Salvador da Bahia. E acabamos de perder D. Paulo Evaristo Arns.
A
prova dos nove
Poeta das
margens do Colônia tornado Cachoeira registrou em verso: O Cachoeira é o maior
rio do mundo, porque é o rio da minha cidade.
Sempre nos
intrigou o versado. Tudo pautado na dúvida entre a criação inédita e a de
transformar o rio nosso no Tejo português, alçado aos píncaros de grandeza por
Fernando Pessoa o de sua aldeia.
Temíamos imaginar – injustamente – no degrau daquelas que balbuciam orações
e acariciam rosários enquanto fuzilam o olhar em volta para registro de prosas
sobre o alheio, que o nosso vate houvesse bebido no maior da Língua Portuguesa
sem mesmo a ele dedicar a obra.
Por outro lado – oh! angústia – bem poderia
nunca tê-lo folheado, e, então, sua inspiração levava-o a outras considerações:
elevara ao Panteão nosso outrora rio das pedras partidas pretas na denominação
dos nativos que o tinha como Ita-aba-una, hoje ansiando sobreviver. E
estaria no degrau de Alberto Caeiro, no XX, de O Guardador de Rebanho.
A Carl Jung a
primeva concepção do inconsciente coletivo, instrumento de residualidade, em
cada um, da informação universal da espécie no mais profundo da psique,
repositório dos traços funcionais comuns a todos. Imagens arquetípicas que se
expressam quando as circunstâncias o ensejam. Ainda que na reformulação de
Erich Fromm (nossa leitura obrigatória na adolescência, desde quando o descobrimos
em Meu Encontro com Marx e Freud, Conceito Marxista do Homem e O Dogma de
Cristo, dentre outros) tal inconsciente se faça no prisma social, insuscetível
de ser alcançado pela consciência, sempre nos fixamos na constituição
cósmico-holística para melhor explicarmos o que nos foge à lógica a que submetido.
Dia desses
Ravi – neto em seus cinco anos acabados de completar na permanente sabatina a
que somos submetido – nos bombardeou:
- Vovô, por
que minha escola é a maior escola?
- Não sei,
Ravi. Difícil responder, até porque não podemos afirmar que seja ela a maior
escola. E tentamos esgotar: - Há muitas escolas grandes.
Como em
outras oportunidades acabávamos de nos envolver na tentativa de encontrar uma
resposta que o convencesse, pois não tardou retomar a sequência de por quês até que satisfeito com a
resposta que seria definitiva.
Estávamos
nesse trilhar entre o “por que” e o “porque” já por mais de um minuto.
Então foi
definitivo, diante da ignorância deste septuagenário:
- Vovô, você
não sabe, mas eu sei: minha escola é a maior escola porque é a minha escola!
Certamente
nunca leu Fernando Pessoa. Como nosso vate antes de poemar.
E para os que
duvidam de Jung, a prova dos nove.
Epifania
Uma
certa nostalgia beira a depressão profunda. E se nos acomete quando se aproxima
o Natal, anunciado sob o condão de que o mundo real é o recôndito que emana do
encravado no Ártico de Papai Noel. E tudo conspira contra o resgate da alegria,
no subliminar divulgar o “espírito” de menos fraternidade e mais materialidade,
menos irmandade e mais consumo como saída mágica para as mazelas do planeta e
de sua gente, elaborado no axioma mercantilista de que o ter, pelo poder da compra, realiza o ser.
Ao
contrário de “Bate o sino pequenino, sino de Belém, já nasceu o Deus menino
para o nosso bem”, a “Boas Festas” – de Assis Valente – melhor compreende esse
estado de espírito, refletindo a contradição entre a esperança da igualdade
inspirada no nascimento do Menino Jesus vocacionando o Homem à Felicidade e a
que “inspira” as burras dos que ofertam um mundo melhor, sempre adiado,
alimentado na concentração e não na distribuição das dádivas da riqueza.
Por
outro lado, temos que um “raso da Catarina” da dura realidade há muito
desmoralizou os versos de “O Velhinho”, de Octávio Filho, aquele do “Botei meu
sapatinho na janela do quintal” porque “seja rico ou seja pobre o velhinho
sempre vem”, singular utopia socialista, só não tachada de comunismo comedor de criancinha porque alimenta o capitalismo.
Afinal,
quando despenca a distribuição da riqueza no planeta, quando o desemprego ainda
existe, a senilidade do Papai Noel se acentua e torna-o mais seletivo,
conduzindo o trenó somente para endereços de quem disponha de castelos com
reluzentes luminárias que lhe sirvam de farol em noite de tempestade.
No
entanto, o talento para idear meios cada vez mais capazes de exaurir poupanças
manipula o espírito natalino-cristão em benefício do natalino-comércio. O
sentimento da afetividade aflorada no imaginário, seduzida por música
angelical, dispara o processo do
compre-compre-quanto-mais-comprar-mais-feliz-será.
Nos
últimos anos concebeu de instalar árvores de Natal em agências dos Correios e
centros comerciais “enfeitadas” de cartões com pedidos de crianças que não
possuem endereço com estacionamento para o trenó do cidadão da Lapônia.
Não
deixa de ser comovente folhear tais pedidos, que sensibilizam certamente. “Já
faz tempo que eu pedi, mas o meu Papai Noel não vem, com certeza já morreu ou
felicidade é brinquedo que não tem”, declama Assis Valente, ecoando em nós mais
pela melodia internalizada no imaginário do “compre” do que pela mensagem que
expressa, elaborada para todas as idades.
E
se nos alcança o Quixote redentor de que fazendo
a minha parte contribuo para mudar o mundo. A universal “Noite Feliz” –
letra original de Joseph Mohr para melodia de Franz Gruber, que se atribui
composta no 25 de dezembro do distante 1818 – embala os sonhos de um mundo
melhor lembrando que “O Senhor, Deus de amor, pobrezinho nasceu em Belém”,
razão por que a doação que se fizer nasce na manjedoura divina alcançada pela
estrela guia.
Mas,
dizíamos, não deixam de sensibilizar tantos pedidos para crianças que se
encontram sob cuidados e atenções alheias dedicadas à prática do amor ao
semelhante. Particularmente, os olhos marejam nas lembranças da infância
sertaneja do autor, causticada a vida como a terra pelo sol, quando sapatinhos
e meias eram postos bem arrumadinhos no compasso da espera e ficávamos
retardando o sono na venial curiosidade de aguardar o velhinho para
agradecimento pessoal e morrer de felicidade num abraço daqueles que só as
crianças com sonhos satisfeitos podem dar.
E
na desperta manhã quando nos debruçávamos sobre a realidade compreendíamos como
punição o nada haver recebido – criança desobediente dá nisso mesmo. E púnhamos
as mãos postas em oração silenciosa de mea
culpa, ajoelhado ao lado de meias e sapatinhos vazios pedindo indulgências
pela curiosidade. E antecipávamos o pedido implorado de que não fôssemos
esquecido no ano seguinte e que continuaríamos um bom menino, rezando ao
levantar e ao deitar para papai, mamãe, vovô, vovó, titio, titia, irmãozinhos e
também “para você”, Papai Noel. Então corríamos para nos pendurar no batente da
janela bebendo na ânfora da alegria alheia, olhar fundo, distante e comprido,
brotado de foto de Sebastião Salgado.
É
por isso que marejamos diante destas árvores pendidas de esperanças, sonhos e
tantas expectativas com uma indagação: se não aliviadas de todos aqueles
pedidos postarão as destinatárias mãozinhas vazias em oração, adiando a
esperança? Terão voz para “Noite Feliz”, compreendendo a crueza da existência
na realidade pautada em desigualdades?
Afinal,
para o comércio, apenas algumas unidades a menos nas estatísticas dos negócios.
Para a infância, a quem só resta o ano próximo, uma frustração que pode
marcá-la para sempre, como ao gado sob o ferro em brasa, indelével para
existência.
Mas
nos vem Máximo Gorki: “tempo virá em que os homens se admirarão uns aos outros, em que
cada qual brilhará como uma estrela, em que escutará a voz do seu semelhante
como se fosse uma música” (A Mãe).
Por
causa disso nos inclinamos a rogar que a epifania se faça e alguém tenha tomado
o cajado de Papai Noel e guiado o seu trenó para evitar o desencanto de uma
criança. Que é a coisa mais triste de se ver.
E
de compreender!
Comemoração
O golpe militar de 1964 não se fez compreendido nos rincões do Brasil como muitos podem imaginar. Nem de longe repercutiu como o suicídio de Getúlio Vargas. As informações chegadas, através do rádio, traduziam propaganda oficial manipulando a população para aplaudir os que enfrentavam “comedores de criancinhas” e “lacaios de Moscou”. A mesma que encontrava no cura a palavra de Deus contrária ao “comunismo ateu”, estuprador de freiras.
Para completar, as marchas da família com Deus pela liberdade e pela democracia faziam voz corrente, em todos os espaços, de que, não fora a sacrossanta intervenção das “gloriosas forças armadas”, o país teria sucumbido aos adeptos de Belzebu.
Ultrapassada a fase de limpeza, de imediato jorraria leite e mel, o país se agigantaria, o povo farto de trabalho e riqueza. Aquela coisa do Brasil entregue ao estrangeiro não passava de prosa de subversivos, como os tais do “grupo dos 11”.
O povo não tardou perceber que a propaganda não chegava ao cotidiano. O aperto se aprofundando. O roçariano atrelado ao armazém – que lhe custeava a folha, fruto vendido na flor – aferrado à ideia de que não podia escapar da escorcha dos juros, ainda que sob a espreita de lhe tomarem a terrinha.
Certo que, como dantes no quartel de Abrantes, em terra que vivia dos frutos de ouro, o armazém e os bancos continuavam a fazer a festa e o produtor rural pagando a conta.
Como o medo – calado em cada um – acompanhara a propaganda oficial, aos poucos foi tomando corpo o desejo mórbido de ver aquela gente governante, eleita sem voto, sofrer um constipiu, um derrame. Simplesmente bater as botas. Morrer.
Escapar do armazém, o sonho de todos. Realização de ínfimo punhado. Deste universo João Paulo. De domingo a domingo plantando, podando, cuidando do mela. Cacau, saquinho que fosse, entregue no armazém para reduzir a conta. Que aumentava a cada atualização. Não havia safra que ajudasse a diminuir.
Um dia João tomou tino de que aquela coisa não estava certa. Pensou em tirar de doido e de arma em punho exigir a entrega das notas promissórias assinadas em branco, preenchidas ao alvitre do embusteiro ao final de cada ano, sempre mais uma “para variar”. Mas, temente a Deus e à lei, sabia que só o inferno e a cadeia teria por destino, família ao deus dará.
Um dia prometeu a todos os santos, diante do nicho, de que se quitasse a conta no armazém soltaria doze dúzias de adrianino para comemorar o feito.
Deixou de aceitar dinheiro adiantado do armazém. Esfolou mãos na enxada, podão, facão. Encascou as costas sob o peso dos caçuás.
Os anos correram, quase dez. Vendo sua alegria contrastar com a tristeza do armazém, quando chegava o tempo do encontro de contas. Os juros escorchavam, mas, mesmo assim, foi reduzindo o débito. Até aquele dia, quando acabara de entregar as últimas amêndoas para quitar o que devia.
Do saldo cumpriu a promessa. Comprou a grosa de rojões, encheu os caçuás de dois burros, rumou para o ponto mais alto da cidade e começou a festa. A cidade atolemou-se com tanto foguetório. Não era tempo de padroeiro, de Cosme e Damião, tampouco São João.
Não tardou, a polícia chegou e levou preso João Paulo. Diante do delegado, sem entender o que acontecia, indagado da razão daquele alvoroço. Contou a sofrida história. Liberado.
Quando saía ainda lhe perguntaram se conhecia o Marechal Humberto de Alencar Castelo Branco. Respondeu que nunca dele ouvira falar.
O cearense tinha acabado de morrer em acidente aéreo, noticiara o rádio há meia-hora.
Justamente no instante da comemoração.
Manezinho Capador
Pros lados do Pardo, na região de Potiraguá havia um camarada famoso como castrador. Entretanto, a fama não decorreu da profissão, por ter a mão-boa ou perícia na arte da castração.
Manezinho Capador, como conhecido, vivia numa das fazendas ribeirinhas ao rio Pardo, próximas à balsa de Moisés, que também servia de “ponto de venda” para os moradores da região e dos usuários do único meio de travessia do rio, já que mesmo em época normal era rio valente. Por ali fazia ponto de prosa e a venda se tornou referencial para encontrá-lo ou mandar-lhe recados.
Mulato claro, forte, estatura mediana, queimado pela labuta diária das fazendas de pecuária, correndo atrás de gado – o Capador. Como “virtude” não gostava de desaforo, que falassem qualquer coisa contra ele. Não se sabe bem a origem da fama. Certo que não nasceu do fato de castrar animais, mas – como circulava à boca miúda – de existir uma lista de “cabras gordos” e mansos como cordeiros na região, “operados” através de suas mãos especializadas, coisa de fazer inveja a cirurgião formado. O motivo para tais “cirurgias” só Deus sabe.
Ponto de venda, em qualquer lugar, não pode deixar de ser o centro de conversa fiada (que o digam Geraldo e Mide, se resolverem relatar as estórias ouvidas na “Drogaria” que possuíram em Itororó que – para quem não conheceu – não passava de uma “farmácia” montada com as mais variadas infusões em cachaça, desde a “galinha” até o figo, o pratudo, alumã, cobra, cidreira, erva-doce). Há os fregueses cotidianos, os que passam uma única vez para confirmar a fama. Os engraçados, os chatos. Quando tomam “algumas” há os que dormem, os que conversam brigando, os que ficam valentes, os que desafiam o que conhecem e o que não conhecem. Estes últimos são um tipo a parte; parecem sublimar incapacidades e desafiam o que nunca fariam em estado normal.
Dessa última estirpe, lá na vendinha apareceu um dia um rapazola, franzino para sua juventude, desconhecido nas redondezas, e que, após uns dois goles, puxou conversa de valente, sabedor da existência de “um tal Manezinho Capador, que – diziam – tinha fama de capar gente”.
– Mas comigo é diferente. Esse tal nunca encontrou macho. Se é que já capou alguém mesmo...
Enquanto desancava a prosa, sem que percebesse, um molecote saiu da venda e foi contar a Manezinho o que acontecia.
Não tardou muito e o valente, após ingerir mais algumas, viu chegar um grupo de oito a dez homens, que foram se acomodando aos poucos em todos os espaços existentes, com jeito de “quem não quer nada”. Gente de Manezinho, que sondava o valentão, temendo – como o imaginara o próprio – fosse algum pistoleiro querendo acertar alguma conta com ele, sabe-se lá por que.
Estrategicamente cercado, e sem o perceber, o valente continuava prosa e desafio. Não tardou notar a presença daquele homem troncudo, de meia estatura, moreno-claro tostado pelo sol, cortando fumo para fazer um cigarro-de-palha. Nem o “silêncio de velório” fê-lo perceber o que ocorria, ou por acontecer, até que Manezinho resolveu intervir na conversa:
– Vosmicê tá dizênu qui qué conhecê esse tar de capadô?
O bravo não se fez de rogado e repetiu a conversa que despejara anteriormente, sentindo-se o máximo, arrotando ainda mais valentia.
Manezinho, olhando de soslaio, traçava a palha para enrolar o fumo já picado. Humilde, após certa pausa, disse quase sussurrando:
– Ié, vosmicê ié brávu mêmu... De onde ié o “minínu”, de que “famia”?
– Apesar de não lhe interessar, eu vou lhe dizer: eu sou da região de Itambé e tenho parentesco meio longe, por parte de pai, com os Gusmão, de Conquista... – e olhava em volta, como a buscar respeito. Mas isso não importa... cadê esse tal de Manezinho Capador, que eu quero ver se ele é mesmo essa coisa que contam por aí. E voltando para o balcão:
– Bota mais uma aí!
Não houve tempo para mais nada. Nem para levantar o copo. Manezinho, calmo e mansamente, voz pausada, ordenou:
– Turma, segura o hômi, qu' ieu quero vê se ele ié macho mêmu. E completou a sentença: – Tira as carça.
O conversador não teve nem como espernear. Num piscar de olhos estava cercado, bem seguro, e quase como viera ao mundo, não fosse a camisa que lhe deixaram sobre o corpo e a cueca samba-canção que se tornara única veste inferior. Empalidecera a ponto de confundir a cor da pele com a da vestimenta que lhe cobria as 'partes baixas'.
Puxando o capa-garrote, Manezinho ordenou a um dos homens que tirasse a “cerôla” do homem, que a essa altura – se nem mesmo tinha cor – estava mudo e tremia como vara verde.
Realizada a operação-tira-cueca veio a ordem:
– Segura o saco desse safado e aperta bem.
Assim foi feito. Quando o escroto, por força da pressão parecia querer explodir, já vermelho-roxo, Manezinho abriu a lâmina do capa-garrote e com ela espalmada deu um “tapa” na sensibilidade do desvalido, que se encolheu todo num gemido longo e reagiu com a reserva de ar abdominal que foi ouvida no Palmeirinha, acompanhada de um esguicho de merda que atingiu a parede.
A contra-ordem de Manezinho veio incontinenti:
– Sorta o safádo, qu' ieu tô custumado a capá ié hômi e não cagadô – e abriu uma gargalhada do tamanho do mundo, no que acompanhado por todos.
Alheios aos contorcionismos e gemidos do valentão pelo chão da venda, aos poucos foram os presentes saindo, um a um, ficando somente o valente e o vendeiro. O valente, pernas abertas, gemendo, limpava a sujeira que fizera, vigiado de perto pelo comerciante, que lhe ordenara o trabalho.
Sob pena de mandar chamar Manezinho.
Grupo dos Onze
Brasilino trabalhava na Prefeitura, emprego conseguido pelo compadre Henrique, a pedido de Zeca Pinto, nos idos de 1963, ali em Itororó – quando ainda não se tornara terra da carne-de-sol. Servia cafezinho e atendia um ou outro prestando informações, como indicar uma secretaria ou gabinete, se alguém estava ou não.
Nos anos que antecederam ao último golpe militar diziam que se uniu a um alfaiate, um comerciante de tecidos, um motorista e outros oito, decididos pela formação de um “grupo guerrilheiro”, apoiado ideologicamente pelo brizolismo. A Rede da Legalidade em 1961 já se tornara o programa radiofônico deles preferido.
Após o golpe um coronel do Exército passou a ocupar o Gabinete do Prefeito, deste recebendo todo o apoio para as investigações que apuravam as atividades do grupo “subversivo” no local. E Brasilino servindo cafezinho. Para informar aos companheiros qualquer novidade. Caso necessário, orquestrar uma fuga para evitar a cadeia.
Derneval Landim, Secretário de Administração do município acompanhava tudo, prevendo que numa determinada hora precisaria ajudar aqueles pobres coitados, sonhadores alguns, interesseiros outros – como o comerciante, que pretendia ser o fornecedor único de tecidos na região para o novo governo.
Um dia o Coronel mandou chamar Brasilino, que atendeu todo mesuras, cheio de dedos, estranhando aquele chamado, já que, quando permitido, apenas levava o cafezinho. Nem mesmo oferecida qualquer outra atividade, esta cumprida pelo ordenança do militar.
– Bom dia, “seu” Brasilino.
– Bom dia, General.
– General, não, “seu” Brasilino, Coronel!
– Ah, sim senhor, me desculpe Coronel.
E o interrogatório teve início, já com as ponderações feitas anteriormente por Derneval Landim, ao Coronel, quando soube que Brasilino seria interrogado sobre suas atividades revolucionárias na região.
– Sr. Brasilino, o senhor já escreveu alguma carta para Leonel Brizola?
– Não senhor, Deus me livre?
– E esta carta, “seu” Brasilino – e debruçou a missiva sobre a mesa, com a incontinenti indagação:
– A assinatura é sua?
Brasilino gaguejou e engoliu em seco quando viu o nome aposto nas garatujas.
– Parece, Coronel – tentou remendar, tremendo como vara verde.
Não conseguiu ler o que posto entre as mãos. Mas ouviu do próprio militar o contido nas poucas e objetivas palavras:
“Estimado líder Leonel Brizola. As coisas aqui estão boas. Só faltam as armas.”
Brasilino levou para o paraíso a tremedeira daquela hora. Eternamente agradecido a Landim, que demovera o militar de prosseguir na apuração.
A infância faz-nos viver situações para as quais não atribuímos o valor necessário. O tempo, entretanto, talvez pela impossibilidade do retorno viabilizado pelas recordações, fixa-nos, como mestre, o justificado nas dimensões de afeto, carinho, reminiscências. Não à toa a maneira como rememoramos entes ou amigos queridos deixa sempre a ideia de que algo ficou sem ser dito, que o olhar não foi lançado, que o sorriso não foi mostrado, que faltou a conversa final.
Os folguedos da meninada – hoje praticamente limitados às salas de internete – obedeciam ao ritual do depois da escola, do estudo, do jantar, dentro de limites e normas próprios da província onde vivia.
As famílias – após o jantar, lavados pratos e talheres em mutirão caseiro – sentavam-se à porta, postas as cadeiras e espreguiçadeiras na calçada, os chefes de família já vestidos no pijama para coordenar o comentário da novela (do rádio), enquanto vigiavam a prole nas piculas e cantigas de roda.
Os meninos iam conseguindo, aos poucos, certa autonomia, pela liberdade de irem se afastando daquele centro de vigilância, até desembocarem nas peladas noturnas, iniciadas num trecho mais longínquo da rua e depois estendidas para a “disputa” entre ruas e bairros, nos campos “oficiais” disponíveis.
Aquela autonomia tinha seu processo iniciado no período diurno até que conquistado o exercício das peladas à noite. Geralmente sustentadas em fugas, e motivo da imposição ao banho antes do deitar, já que os atletas estavam em petição de miséria no que dizia respeito aos humores naturais.
Algumas vezes os encontros não se resumiam somente ao futebol; também a oportunidade de se tirar satisfação por qualquer coisa, sempre por meio das vias de fato, fosse entre desafetos individuais ou grupos, quando encontro entre ruas ou bairros. O futebol, o maior álibi, o meio de, através de uma falta pouco mais violenta, desencadear a luta campal. Valtenor e Basinho Chuva, Tim de Adalberto, Simõesinho, Leninho de Valdomiro, Robério de “seu” Leônidas, foram alguns daqueles que não levavam desaforo para casa.
Em Itororó – palco da infância – a rua da Cancela, ficava próxima ao “campinho de Dona Auta”, tornado maracanã dos flamengo-e-vasco da imaginação.
O autor entre os meninos da rua da Cancela, da rua Apertada, da Pç. Castro Alves. Os “do centro”, que elegeram o Cachorro Assado como inimigo natural. Nas disputas entre ruas e bairros, ficaram na memória aquelas com a turma do Cachorro Assado.
Certa dia, digo, certa noite, em que pesasse recém-saída da chuva, a turma do “centro” foi disputar com o “Cachorro Assado” uma partida revanche, assim que a lua abriu o olhar. Era o jogo de volta da derrota – na bola e no tapa – sofrida dias antes, sucumbidos pela idade mais adulta dos “meninos” do Cachorro Assado.
Dentre os atletas convocados – muito mais “autoconvocado” para a ocasião – Tim de Adalberto manifestava especial desejo pelo evento revanchista. Ninguém entendeu a disposição.
Iniciada a peleja, bola vai, bola vem, uma falta aqui, outra ali, e o clima foi tomando o rumo desejado: para a turma do Cachorro Assado, novamente botar a do “centro” para correr; esta aguardando o momento da desforra.
Não demandou muito tempo.
– Falta contra o Cachorro Assado – gritou Tim, caído perto da área – é penalte...” – já com a bola debaixo do braço encaminhando-se para a marca fatal.
– Não foi falta – repele Juscelino, líder adversário – “não bate”.
O bate-não-bate não poderia desembocar em outra coisa se não briga. O mote para Tim. Enquanto os demais aprofundavam a discussão, ensaiando o clima para a pancadaria, correu para junto da roupa.
O primeiro sopapo fora desferido quando se ouviu o primeiro tiro, logo depois o segundo. Silêncio sepulcral. Percebia-se mosca voejando. Ouvidos atentos aguardando gemido ou grito de algum ferido.
Passados alguns segundos, que pareceram séculos, o silêncio foi quebrado apenas pelo “chap-chap-chap” dos pés nas poças d’água do gramado recém chovido do mangueiro de Dona Auta. Da turma do Cachorro Assado, na desabalada carreira em busca do bairro – dispensando conferir se os disparos se repetiriam, tampouco se o foram para o alto – enquanto os do “centro” dobrávamos gargalhadas comemorando a vitória, com o adversário posto a correr.
Graças à intervenção providencial da garrucha dois-tiros-uma-carreira de “seu”Adalberto, trazida a campo pelo artilheiro Tim.
Outra infância! Outra criatividade!
Conto de fadas contemporâneo
A realeza britânica alimenta o turismo pátrio espalhando mundo a fora alguns dos pares para manter viva a manufatura moderna – o turismo – menos dispendioso que os antigos galeões e piratas vários que contribuíam para manter o mundo sob domínio da coroa de um “império onde o sol não se punha”. Dos jovens filhos da princesa Diana ao feioso Charles (aquele que preferiu a fera à bela). Saem em missões humanitárias ou voltadas para plantar interesses, como o faz o do “tampax” periodicamente no Amazonas.
A passagem recente do Harry pelo Brasil fez debruçar parcela significativa de adolescentes femininas no batente da janela/televisão para suspirar. No imaginário os contos de fadas ainda se fazem presentes nos sonhos. No fundo o renegado casamento para muitos, em tempos “de ficar”, ainda se mantém na crista da onda. Para quem duvidar indague a razão por que de alguns aquinhoados gastarem milhares de reais com vestidos de noiva, festas de solteiro e de casamento. Até a Igreja Católica, em algumas paróquias, estabeleceu critérios singulares que ajudam a alimentar a nova indústria.
A propósito, nos veio à mente Clara, parte desse universo. Sonhava casar-se no civil e no padre, com direito a violinos executando a marcha nupcial na entrada e a “Serenata” de Schubert na saída, jogando buquê para as amigas e brindada com alguns quilos de grãos de arroz.
Fora preparada para o casamento à antiga, aprendendo até a coser e cozinhar, ainda que tivesse que estudar, porque os tempos são outros e quem não tem diploma não vai a lugar nenhum. Lia clássicos e dispunha de respeitável repertório de música, do popular ao erudito. Achava as festinhas chatas com essa coisa de sertanejo universitário e quejandos. Mas, para dançar, aprendera que mais interessava o ritmo e menos a melodia. E, afinal, seus humores não podiam interferir no alheio nem impedi-la de viver.
Concluiu o curso universitário e logo encontrou ocupação no mercado de trabalho. Outros cinco anos haviam passado e o sonho adolescente persistia. Com a estabilidade financeira faltava-lhe apenas o príncipe – ainda que sem castelo – que ajudasse a trilharem juntos o caminho do futuro.
E tudo aconteceu. Numa tarde, percebeu o rapaz que a olhava com regular insistência há dias, procurando um jeito de sempre estar perto dela. Não tardou a devolver olhares. Descobriu-o com todas as virtudes. Trabalhador, honesto, preocupado em constituir uma família estável etc.
Namoraram, como todo mundo. As famílias vendo no par uma realização privilegiada. Encontravam-se sempre que podiam, comedidos diante da labuta de cada um. Almoços alternados com familiares aos domingos. Quem os via percebia-os apaixonados.
Programaram férias nos respectivos empregos a um só tempo e casaram-se dois anos depois, cerimônia realizada com pompa e circunstância (a famosa marcha de Edward Helgar pelos violinos, dando ares de realeza ao instante), com direito a lua-de-mel.
O caro leitor, ainda vivendo no tempo da fantasia, pergunta se viveram felizes para sempre. Não. Divorciaram-se há pouco. Sem filhos. Passados quatorze meses ela descobriu que o consorte bebia e jogava.
No entanto tudo isso ainda dava para suportar – confessou a uma amiga – porque passível de tratamento. Mas se isso não era o pior o que a fez tomar a medida extrema?
A princesa não suportou descobrir um príncipe viciado em BBB.
O olheiro
Fato
verídico, para que não duvidem da seriedade do escriba, tirado a ficcionar
verdades e a verdadeirar mentiras.
O time
provinciano tinha fama, bons atletas. Nesse viés nunca conseguira, no entanto,
um zagueiro para substituir Zelão. Não porque sobrassem virtudes ao dito mas
porque não surgia quem quer que fosse capaz de enfrentar adversários.
Enfrentar era
a palavra certa para aplicar-se ao caso concreto. Adversário – atacante, meia
ofensivo ou zagueiro metido a goleador que fosse – não passava de ‘pirão’ para
o valoroso beque central.
Sua
preparação para o jogo passava não pela reserva física – com cautelas naturais,
como não ir ao brega a partir da sexta-feira – mas pela concentração para a batalha,
pensamento fixando canelas adversas. Caso lhe mostrassem foto da vítima a contemplação se sobrepujava e o indigitado
corria o risco de sofrer um infarto e nem entrar em campo, tanta a energia
despendida por nosso herói.
Nunca teve
veleidades a ser mais do que conquistara: atração do time. Não pelo avantajado do futebol que apresentava,
mas por despertar a curiosidade nos que iam assisti-lo e descobrir quem seria a
vítima de seus birros. Ou o que sobraria dela.
Não tinha
pejo em lanhar o semelhante que ousasse ultrapassar sua linha Marinot. Mesmo se
utilizou de reforço extremo (utilizado por Júlio sapateiro) – até que alertado
pelo delegado, quando descoberto, de que aquilo constituía tentativa de homicídio
– de bater pregos nos birros, cortando-lhes a cabeça sem esquecer de deixar em
torno de 1 milímetro escancarado em cada um para facilitar o trafegar pela pele
e carne adversária quando subia o que chamava de pé e o ‘esquecia’ no corpo do
infeliz.
Ninguém que o
conhecesse tinha a desfaçatez de tentar driblá-lo. Bola recebida próximo ao seu
território, de imediato despachada, em um só toque.
Um dia
anunciaram um jogo importante, de rivalidade ímpar (tipo capital contra interior),
com a Portuguesa, do Rio de Janeiro, que trazia para exibição, o Danilo Alvim, da
Seleção Brasiléia de 1950.
Nosso herói já em fase de concentração decidira que só livraria
Danilo (que defendeu as cores do seu Vasco da Gama) quando lhe chegou alguém ao
pé de ouvido para falar de um olheiro da Cidade Maravilhosa – “não podia
afirmar se do Vasco, do Flamengo, do Botafogo ou do Fluminense” – que fora
destacado para acompanhar a delegação da Lusa Carioca e levar alguns do time
para o centro do futebol brasileiro e ele entre os observados, em razão de suas
qualidades técnicas e disciplinares.
Foi o que
bastou. A concentração mudou de alvo. Sonhou por duas noites como exemplar espécime
de Ademir da Guia, Nilton Santos, Didi, Léo Briglia etc.
Domingo
chegado, campinho abarrotado de gente, homenagem a Danilo, apito iniciando a
partida.
Na primeira
bola que lançou o time adversário para o ataque sobrou para ele. Buscou amaciá-la
no peito, deixá-la cair nos pés para olhar a quem a distribuiria. A danada
resvalou na canela, como um passe perfeito... para o atacante adversário. Que
ainda cuidou de driblá-lo quando se voltou sobre o próprio corpo, antes de cair
e ver aberto o escore.
A goleada foi
histórica. Nunca mais ocupou lugar no time. Nem como reserva. Tornou-se motivo
de chacota.
Ainda hoje –
se vivo está – busca o “olheiro”. Que, soube depois, não passava de um ladino
que apostara alto, dando vantagem de cinco gols. O finório pusera um parceiro
“de olho”, que se instalara na pensão de Dezinha e espalhara a notícia em
conversa sigilosa com seu Mano durante janta na sexta, antevéspera do jogo.
A
inconfidência de ‘seu’ Mano se espalhara como fogo morro acima. O que muito
irritara o ‘olheiro’, mas não o impediria de cumprir com sua obrigação. Como
andou dizendo em alguns botecos, quando perguntado, respondendo com certa má
vontade. Despertando o respeito, ouvindo conselhos e recomendações. E indicações.
Ah! Que
ninguém pronunciasse ‘olheiro’ para que nosso herói pudesse ouvir.
Coroinha
Toda
província que se preze tem seu doido. Uns porque inteiramente loucos,
desmiolados – como dizia vó Tormeza,
para ilustrar os sem juízo –
desprovidos de qualquer senso de responsabilidade social, já que a denominada
civilização cuidou de valer-se de conceitos por ela formulados em defesa de sua
lucidez, ainda que nem sempre isso signifique sanidade. Aí estão – dentro da dúvida
posta – dirigentes mundiais promovendo guerras e absurdos, dissociando países.
Outros o são
porque desconectados dos padrões alimentados pelos conceitos acima.
De uma forma
ou de outra, cada província tem o seu estranho.
Itapuhy já
teve muitos, no curso dos anos. Um deles, no entanto, ainda resiste nos
escaninhos da lembrança: Coroinha.
Nunca alguém
o viu conversar. Falava com o olhar dos gestos para insinuar alguma
necessidade, como o comer, o beber. Compreendido porque lhe passavam um prato
de comida, enchiam o litro d’água que portava pendurado ao pedaço de corda em
torno da cintura, que lhe servia de cinto. Enfeitava-se nos calcanhares de
fitas e pedaços de tecido, coloridos, destacando especial pendor pelo vermelho.
Construiu um
carrinho-de-mão – galiota para os modernos – que muitos poderiam imaginar de
utilidade para conseguir o vil metal carregando feiras e bugigangas. Como não
correspondia à função, tinham como uma expressão de seu desvario – porque o
lúcido se imagina capaz de entender e interpretar o maluco – sublimando veículos
que não possuía.
Descobriram o
apreço por embriagados, escornados de fim de feira. Não podia vê-los caídos
pelos passeios. Esperava, paciente, o esvaziamento do movimento, o bater de
portas e punha-se à caridade de transportar o infeliz.
Para as más
línguas, nele não havia altruísmo. Outra, a intenção. Afinal, o de bêbedo não
tem dono.