Amendoeiras de Outono


A prendeu a compreender a dor da perda, na própria pele, de repente, como coisa presumível, comum, tal a naturalidade com que acontecia naquelas paragens. Deitara sem nada perceber de anormal. Uma irmã, menor que ele, tossia fraco há dias. Sentia haver algo estranho em razão da preocupação desdobrada da mãe, debruçada sobre o fogão preparando chás e mezinhas, o pai pelos matos a procura de mel de uruçu para juntar aos preparados à base de raiz de fedegoso e mastruz; leite de cabra arrecadado das criações vizinhas para ajudar. Fisionomias mais tensas e preocupadas. Dia seguinte, quando amanheceu, ausente o rebuliço da cozinha, procurou logo se levantar, martelado o juízo, a dizer-lhe que algo acontecera. Esfregando os olhos encaminhou-se para a porta, sonolento, buscando a razão do silêncio. Encontrou o pai abrindo buraco no chão, perto do umbuzeiro, não longe da casa, mais comprido que quadrado. Ficou olhando, sem ainda entender. Imaginou que ideava água. Mas não carecia. Talhas cheias. Ele mesmo não as enchera? Viu-se lacrimejar quando a mãe passou com a irmãzinha, enrolada em panos. Camisinha de pagão bastara para cobrir-lhe o franzino. Par de chiquitos esfarrapados completava o enxoval, lanando os pezinhos que deles não mais careciam. Bracinhos despencados, inertes na magreza. Posta na cova acabada de abrir. Os andrajos que serviram de lençol envolviam-na. Terra jogada por cima. Pedras a circundariam. Pareceu-lhe, no entanto, que o pai não queria sepultá-la, tão lento repunha a poeira de onde tirada antes de colocado o corpo infante. Cruz tosca enfiada no fofo, marca para lembrança. Olhava o vazio do quadro, refletido nos pais. A mãe não chorava, com lágrimas, mas imensa a tristeza no rosto. Prantear representaria pouco para a angústia no olhar distante, descobrindo fim de mundo, contemplando a terra-do-sem-fim jogada sobre o corpinho pelo marido, aos poucos, como se quisesse com isso trazê-la de volta. O pai reagia, instintivo, a cada porção recolocada, como se o fizesse apenas para evitar que o rebento rumasse levado por asas negras, coisa anticristã. Perdia-se nos movimentos, lentos na construção da angústia que o atormentava. Percebeu-se em prantos somente quando a mãe enxugou-lhe as lágrimas, com os próprios dedos – após instante infinito de olhar para a cova como a penetrá-la atravessando o mundo, e buscasse rever o milagre de Lázaro no sertão caatingado – e ao voltar-se para o casebre encontrá-lo de pé, perdido no pensamento refletido no olhar distante, afogado em trovoada. Uma angústia imensa tomava o ar e ocupava o espaço vivo. Notou, infinitude do instante, que ocorria com a família a história que ouvia e imaginava só acontecer com as outras. Uma diferença, no acontecido com a irmã, distanciava-o, no entanto: não houvera ladainhas e encomendações da alminha à noite, como soia acontecer nos arredores, e testemunhara tantas vezes, muito de obrigação do que gosto. Mas a história, a mesma: a terra ressequida, vez em quando, abria-se para seus filhos, como se renovar, tanto, talvez, à falta de adubos. Levara mais um que teimara em nascer naqueles carrascos de fim de mundo. Só não entendia porquê a irmãzinha. A inclemência da morte juntava-se à aspereza daquele torrão, daquela gente, que nesse instante aprofundava em aprendizado na própria pele. Conflitos e contradições, passados despercebidos, reconhecidos em instantes como aquele. E uma tristeza, como nunca sentira, apertava o peito, como em viagem sem volta. Instantes depois só restaria chorar baixinho, longe de casa, escondido entre as pedras do caldeirão seco. Recordando as brincadeiras entre ambos. Subindo no umbuzeiro que agora quase a abrigava. Chegou ainda a esmiuçar na mente se não haviam passado cuspe no corpinho da irmã. Tantas vezes vira aquela prática, de ser posta a saliva sobre a parte doente, enquanto rezada a simpatia. Por que não dera certo?



“Jesus, Maria, José
cuspe lembrado
 remédio é"



 O céu, de nuvens macias, contrasta com a dureza da terra rachada. Disputa com os lajedos o direito de traduzir a crueza do ambiente. Materializam ambos, na peculiaridade dos contrastes, a esperança e a realidade. Vez em quando o verde trazido pela chuva confunde-os. Transforma o pecador em deus. Naquele mundão vazio as nuvens envolvem os mistérios todos da vida: quando vestem a serra fazem o homem reviver, quando escondem o horizonte elevam-no a Deus, instante em que percebe o infinito inalcançável na ponta dos dedos, em hora do angelus. Beira a contemplação mística a postura do sertanejo nordestino olhar o firmamento. Peculiar estesia. Concretiza a esperança de alimento, de água para mais tempo. Aprende, pela necessidade, a ler o espaço, a acompanhar o deslocamento das nuvens, o rumo da brisa, o voo das aves. Os fatos da natureza integram-se à existência, confunde o etéreo impalpável em concreta consubstanciação. O amanhecer pode refletir a esperança de chuva, conforme as cores que manifeste. O mais ou menos do avermelhado da aurora traduz reações como o alimentar, o matar a sede. Aquela permanente convivência torna-o um estóico, impassível ante a dor e a adversidade, transforma-o num único ser. Panteísta nas atitudes se integra à própria essência das coisas que vislumbra com o olhar perscrutivo na teimosia do dia a dia, que decodifica na sua construção empírica.
Como a beleza, ou outro sentimento abstrato, a vida que o circunda não pode ser definida. Apenas sentida. Em dimensão próxima à incompreensão do que à volta, porque este o universo, limite de percepção e conhecimento. Sua razão, uma antítese platônica: carece de fugir do mundo real para encontrar aparências, já que a realidade é a mais cruel manifestação de que poderia dispor como espécie dotada de algum valor crítico. Bem e mal perdem a identidade particular, sobrevivida apenas no instante em que invoca um ou outro, trazendo-os ou afastando-os conforme a dependência do instante. Especula o modelo mecânico e o divino, fazendo uso no momento preciso em que cada interpretação se configure necessária. Extrapola, entretanto, a dimensão estética formal, extasiando o observador, objeto da própria observação, endógeno-exógeno, alfa-ômega do cosmos que cria através de sutil aprendizado, vivenciado na teimosia, dia a dia, mês a mês, ano a ano, amparado no empírico da repetida tragicidade. Vive para perder. Vitória o desafio de continuar perdendo ao tempo em que sobrevive. Assim, sublima o tempo, derrotando-o a cada dia de sobrevida, em surda vingança, quando a própria vítima não reconhecida em si mesmo. Herói se torna na dialética do nascer-morrer, síntese no sobreviver, que ali adquire foros de ressurreição diária. Não tem outra história para conhecer senão a de que dispõe: a sua história. O conceito de civilização esgota-se no grotão, no leito do córrego seco, cavando-o em busca de água. Limita-se na possibilidade de o mandacaru frutificar, na espera do amadurecimento do fruto, aí tornado alimento, percebido quando fulorou. Ética vincada ao dia-dia deste resistir, razão por que não fere o semelhante para tirar-lhe o pouco que lhe falte. Antes, até, divide com ele o quase nada que dispõe. Compreende a existência observando-a de fora para dentro, buscando o interior, o âmago, razão por que da incompreensão de tanta angústia, sacrifício, do qual não escapa, apesar de não ser o criador. Nunca fecha totalmente a porta, no entanto. Deixa sempre uma fresta para que a esperança material possa um dia entrar, e não deixe de fazê-lo sob a alegação de que não encontrara a chance. Confia, mesmo apanhando diariamente, numa eternidade de vida.
A assertiva esotérica ou alquímica de que tudo que está em cima está embaixo, e vice versa, vivida sem nunca ter ouvido de quem quer que seja sobre tais mistérios, tidos para iniciados. Chega-lhe através das superstições, das adivinhações, das simpatias, das reverências, das incelenças, das rezas para tudo. E assim a terra rachada torna-se nuvens macias, brancas, caminhando devagar no espaço, alternando-se em bois, carneiros, corredeiras, semblantes vários, produzindo um conjunto de fartura que o leva a sorrir ainda quando o sol inclemente caustica a pele tostada. Miragem divisada, repetida como consolo. Então descobre-se caminhando sobre as nuvens, antes lá em cima, permitindo-lhe olhar do alto a terra em mosaico, rachada, agora embaixo. Esperança renovada. A cada dia. E tudo, nesse instante, paisagem confundida, traduz rumores de imenso campo no qual restam apenas um ramalhar de árvores frutíferas, agitadas pela brisa querubina, embalada ao som de harpas, tendo ao fundo suave ronronar de corredeiras que rolam águas de entre grotões cobertos de arco-íris. Onde não mais nem céu, nem nuvens macias, nem a dureza da terra rachada. Ao fundo, a melopéia monótona e plangente de um aboio que dá o ritmo à vida naqueles fins de mundo.
Às vezes a imagem de Dom Sebastião, ressuscitado de Alcacerquibir, norteia a permanência da esperança, trazida do inconsciente... das histórias ouvidas, não sabe quando, dos tempos imemoriais. O rei menino, por ter sido rei e menino, nunca morreu. E se faz naquelas paragens através de qualquer manifestação carnal contra o status quo: jagunço, cangaceiro, beato, político destemido, desde que envolto no traçado comum de gritar por melhores condições de vida. Esta, sempre contida no binômio alimento-água.
Tudo, no entanto, parece contrastar com uma permanente tentação de abandonar o sertão. Uma constante. Como a resistência em permanecer, combater, enfrentar. Olhando para o céu, decifrando o imponderável. O mar, mistério maior para os que chegam a conhecê-lo. Centro de lendas para o distante sertão sertanejo, ressequido. “O sertão vai virar mar e o mar vai virar sertão” – a profecia inexplicada oriunda da Canudos mítica, como a imagem do fundador. Interpretada nas noites de lua e prosa, misturada aos contados de valentia em época de lobisomem e boitatá, sob fundo de viola. O oceano atrai o bronco, não pela majestade física, mas por existir em essência: água. Em quantidade impossível de ser gasta. Extasia-o. Certamente o sal o repelirá, trazendo-o à reflexão, de que “Deus dá tudo no limite do merecimento”. E a vontade de fugir reforça o caráter atávico de permanecer, repetindo, em cada geração, a vocação de sofrer à espera de dias melhores. Olhando para o alto, decifrando nuvens... Ampliando o alfabeto. Se do espanto nasce a filosofia, como via Hegel a origem fenomênica do resultado do questionamento grego, o sertanejo cristaliza o próprio espanto, aristotélico porém, ato e potência, explodindo a origem de tudo que o cerca.


D
esde a passagem dos revoltosos o desencanto com o lugar. Estiagens mais longas. Mais uma vez, além da chuva de cambueiro, faltara a de “todos os santos”. Permanente carão na vida do sertanejo. Recorria com mais frequência ao Coronel Josias Macário nos empréstimos para comida. Muitas vezes nem mesmo dinheiro. Apenas quatro, cinco pratos de crueira a moeda do mútuo. A alimentação da família. Complementada com pimenta. Ou um ovo de galinha, cozido, esmigalhado em farofa, dele rarefeita, licuris para disfarçar. Depois de algum tempo de relação negocial, percebeu que parecia de olho em coisa sua. Deu de andar mais pros lados da terrinha, como fizera com a dos outros, quando quis delas se apossar, sabia. Chegava faceiro, como não quer nada, puxava prosa. Relanceava a vista para dentro da tapera, amiudando os olhos, enxergando longe. O que buscava? – pensou Tião. Não sabia. Tampouco presumia. O desgraçado metrava a casinhola, imaginando-a de seu, com o pedacinho de terra, quando não mais pudesse pagar os pratos de farinha tomados? – não sossegou consigo mesmo. Não podia ser... sempre não cumpria no prazo? Não, o condenado não tomaria aquelas terras como o fizera de outros como ele – afirmou convicto. Não entendia. Mas começou a botar tenência nas visitas. Zefa também desconfiando. E a suspeita aumentou quando do acerto, depois de retornado da Marujada de São Benedito, em Jacobina. Lá na casa dele, em Bonsucesso. Não tão ríspido, como nas vezes anteriores. Já três anos naquele puxa-encolhe de tomar e pagar, não imaginava novidades como aquela: agrados do Coronel. Até que não se conteve. Pediu licença a Tião para visitar a casa com regularidade como pretendente à Maria Antônia, a filha de quinze anos. A proposta quase o levou ao chão. Mesmo informando-o ser muito nova para assumir compromissos fincou pé. Passou as mãos pela cabeça do filho, que o acompanhara na viagem. Ainda mais essa! Zefa estranhou o amor perdido, e começou a matutar sobre o que se passava com o libertino. A fama corria até a Bahia das coisas que fazia com as mocinhas das redondezas, jogadas depois na rua da amargura. De corar nos tempos de casa-grande e senzala, quando muita coisa tolerada pelas circunstâncias. Respeito nunca teve por nenhuma, que o dissessem as desonradas a troco de um mísero prato de farinha para alimentar pai, mãe, irmãos menores. Vivendo agora em casas de tolerância. Por que, de repente, com Maria Antônia, menina quieta nos afazeres, caseira? – alguma coisa queria aquele istrupiço. “Sai mandu, praga rúin, laia de serpente” – bodejava consigo mesma, enquanto fazia o sinal da cruz. Não disse nada a Tião. Procurou a filha, contou-lhe o ocorrido. A menina estremeceu, pedindo pelo amor de Deus que a mãe não deixasse aquilo acontecer, e revelou-lhe o nojo que nutria pelo Coronel, desde o dia em que a encontrou buscando água no Caldeirão Grande encostado ao umbuzeiro de Eleutério: conversa mole, saltou da mula queimada, perguntando pela família, e ela sem desconfiar. Até quando disse que era bonita, e que, muito bondoso, tava ajudando a família a comer, que merecia gesto de apreço. Ao se aproximar mais, se sentindo imprensada entre ele e o umbuzeiro, o miserável agarrou-a pelo braço. Apesar da recusa e do pedido para que a deixasse em paz, passou-lhe a mão por entre as pernas, arrastando a barra do vestido para cima, não respeitando nem os nomes de Deus e de Nossa Senhora que fizera pronunciar, na conclusão do pedido. Tentou escapar, mas não deu como. Rasgou a calcinha, ao tempo em que tentava beijá-la. Abaixou uma alça do vestido, fazendo-o ainda mais descer, para trazer às mãos um seio enrijecido, sobre o qual babou sôfrego. Abafada, sem ar, não conseguia respirar. Perdia a noção das coisas. Desesperada, percebeu a nova investida da mão direita dele nas coxas, forçando-as a abrirem-se. Conseguia, no desespero, trancá-las em torquês. Ele lambuzando os dois seios, trazido o outro como o primeiro. Tomado de ânsia incontida, passeava o colo com língua e dentes. Agora, num arrefecimento de seu esforço, a mão penetrava no sexo, arrancando pêlos, dolorindo. Perdia as forças da resistência. O pavor aumentava. Esmorecia. Moral e fisicamente. Estava a ponto de esquecer-se, não resistir, não tinha mais como suportar, “que Deus tivesse pena”. Perdeu a noção do tempo. Os instantes pareciam horas. O corpanzil jogou-a no chão, ofegante. Vestido afastado para cima. O que restava da última vestimenta íntima acabada de rasgar, coxas afastadas. Já se debruçara o desgraçado sobre ela, mãos afobadas, uma prendendo-a ao chão à altura dos ombros, outra abrindo a braguilha, trazendo para fora “a porcaria”. Sentiu, desesperada, que o maldito se encaminhava para penetrá-la, grunhindo como um porco, depois de haver lambuzado a perseguida com cuspe. Aproveitara-se do fato de haver soltado o ombro para tentar desvencilhar-se. Jogou as pernas para cima, e voltou a firmar os pés no chão, impulsionando o agressor para fora com a força dos quadris elevados da terra endurecida. O Coronel cambaleou, o corpo lançado para trás. Maria Antônia levantava-se, incontinente, buscando a fuga. Recuou, no entanto, diante da ameaça do miserável em espancá-la. No breve instante do recuo, jogou-se sobre ela, rolaram pelo chão. Quase a violou na primeira investida, assim que conseguiu imobilizá-la novamente, uma das coxas arqueada, jogada para o tronco, em seguida para o lado, que deixou à mercê do malfazejo toda a intimidade. Porém o aboio do pai, ali perto, tangendo a criação, fê-lo sair às pressas. Enquanto o instrumento do tinhoso descambava caatinga a fora, saíra em desespero à procura da casa, arrumando as roupas, o sexo dolorido. Não, preferia morrer, a ver-se noivando com aquele imoral, coisa ruim, condenado, miséria de gente, mundiça. Zefa nada contou a Tião, temendo a reação do marido. Mas o convenceu a negar a mão da menina.
No domingo, quando Coronel Josias Macário apareceu em busca da resposta, mais enfeitado que madrinha de tropa, envolvido em banho de “meia hora”, já se imaginando com direito a passear com Maria Antônia, Tião foi direto no assunto, dizendo-lhe que não podia deixar de escutar Zefa, a mulher, que achava ser a menina muito nova. “Nem mulher ainda...” – mentiu. O tabacudo não insistiu – “desculpa mais esfarrapada!”. Saiu, acabrunhado, sentindo-se desmoralizado por aqueles pés-rapados, afirmando que aquilo não ficaria assim. Podia agora compreender porque nem um cafezinho os pistiados lhe ofereceram, após mal indicarem o banco tosco de três pernas para sentar-se, depois de uma eternidade.
- Nova uma pinoia! – expressou indignado, pisando o chão como a penetrá-lo.
Não demorou duas semanas, chegaram os cabras do Coronel, cinturas realçadas, para acertar os últimos pratos de farinha. Não adiantou explicar que o prazo não vencera. Aguardassem a colheita da mandioca, daqui a três meses. Deram tempo de não mais que vinte e quatro horas para arranjar o dinheiro, ou vender a terra para pagar o débito. Voltearam a casa, conferindo nada. Com um pau de lenha quebraram uma das talhas. Resto de água esvaindo pelo chão, como se esvairia um último gesto de resistência. Dois dias depois deixavam a roça – agora propriedade de Josias Macário, de papel passado – com destino a Monte Alegre. Tempo até demais para arrumarem os andrajos em três gamelas e tomarem o rumo da cidade, arrastando dois carneiros e um bode, a cabra Rajada, nas mãos um capão e quatro galinhas presas pelos pés, dúzia e meia de ovos para venda pelo caminho. Boto acompanhava o séqüito retirante, sempre rondando a beira da estrada, espantando calangos, quando conseguiam escapar-lhe da oportunidade de saciar a fome, fazendo cabriola aqui e ali, indiferente ao drama. Sobre o lombo de Magriço duas malas de madeira, e algumas trouxas em dois caçuás com o que lhes restara, a caçula escanchada na cangalha. A vaca araçá passou como retrato em sua frente, no preciso instante em que a viu morrer de fome e sede, aos poucos, não fazia muito tempo, numa das estiagens, junto à cacimba rachada em mosaico; a fonte do leitinho ia-se, deixando-o e às irmãs ao relento do mingau de café para o desjejum. Não veria brotarem do esturricado os cágados lançados no buraco escavado com o mijar jabota, vencendo a inclemência do chão na indolente preparação da descendência. A lembrança desanuviou-se no salto em que Boto merendou a lagartixa preta saída de um tronco apodrecido. Encontrando o carro de bois do velho Agnelo encurupitou-se até perto de Monte Alegre, empevitado no cambão, mãos postas sobre um boi e outro. Entre morrer e fugir, Tião preferiu a segunda hipótese. Desse modo o Coronel Josias Macário ampliava domínios em Bonsucesso e Aroeira. A compreensão infante não alcançava como acontecia. Seguia a família sem saber para onde. Lembrou de tudo que viu e viveu. Na saída um olhar distante o fizera correr para o umbuzeiro. Despedir-se da irmã que se tornara anjo. Levantou a vista para o céu azul sem nuvens, como a vê-la para despedida. Acenou-lhe do alto, agradecida pela lembrança, de entre as almofadas de algodão do paraíso, antes que a luminosidade fizesse fechar os olhinhos e os desviasse do alto, retomando a realidade do cotidiano imediato.
De Monte Alegre, depois de dois pernoites ao lado da igrejinha do Bonfim, e de venderem os carneiros, o bode e a cabra Rajada a Pedro Lima “da Jabuticaba”, dono de olaria ali perto, buscaram a estrada de ferro, em Piritiba, cortando Mundo Novo pelos lados do Angico. Na bagagem duas latas com farofa do que foram o capão e duas galinhas, as outras vendidas a “seu” Macilon para ampliar recursos. Seguiram para a Bahia, após negociarem Magriço para comprar os bilhetes. O jumento pareceu humanizar-se, quando tirado para o novo dono. Correu-lhe lágrima, vista pelo menino, que chorou junto, a ele abraçado, na despedida do amigo. Dia seguinte desciam na Calçada, estupefatos com a cidade grande, com o mar. Sem saberem o que fazer. Arrancharam-se na estação. No outro dia abordados por funcionário do Governo que os encaminhou ao porto para embarque no vapor “Itacaré” que se dirigia a Ilhéus, no sul da Bahia. Dádiva do céu a oferta de transporte com destino à região desconhecida, mas de muito futuro, como dissera “seu” Libório, “aonde não faltava comida nem trabalho”. Para todo mundo sempre tinha um pedacinho de chão. A família de Tião, envolvida na esperança de um futuro melhor, começava a esquecer Monte Alegre, Coronel Josias Macário, estiagens.
- Sai, alma sarapantosa – disse para consigo mesmo Zefa. Espantando o passado. Que começava a deixar para trás. Sem nada para herança, como incerto o futuro.
A viagem ficou marcada mais pelos enjoos do que pela novidade que em si representava. Entremeados com a lembrança de Boto espavorido com o apito do trem lá em Piritiba, sumindo antes de posto na gaiola dos bichos. A perda do amigo, parceiro das caçadas, ainda mais angustiava o balançar do vapor. Muitos como eles buscavam o eldorado, carregando análoga esperança. Não soube, tampouco perguntou, se algum ali pelas mesmas circunstâncias. O sufoco na idêntica procura tornava-os solidários: dividiam a pouca farinha e rapadura, partilhavam esperança igual. Nas conversas ouviu de um mulato forte, que se dizia de Almas, “perto de onde nascera Lucas da Feira”, como fazia questão de frisar, sobre a certeza afirmada por “seu” Libório lá na Bahia de que para onde iam não faltava comida nem trabalho:
- , já uví falá muinto de tudo isso, mininu... – e após um certo tempo: cumida pode inté fartá, mai trabai é difíci iscassiá. E com entonação que refletia mistério, fala arrastada para fazer-se mais entendido: - Lá num farta trabai memo... prumode quanu num na inxada, na ripitição – e olhou-o profético, fazendo-o estremecer.
Coube-lhe – sentiu-se na obrigação de fazê-lo – construir uma profissão de fé: - Pode ser, moço... mas nunca vou matar vivente de duas pernas. Nem que seja pra comer.
Sentiu Boto, cochilando ao lado, parecendo compreender o conversado, abrindo um olho de censura, e continuar a modorna, revolvendo o esparramo da estação em Piritiba. Estremeceu. O alarido da primeira classe desviou os pensamentos, tangendo a imaginação pelos caminhos do fausto que a gente engomada envergava, observada quando do embarque.



A
comodava-se na espreguiçadeira. Lona listrada em comprido, destacando o verde e o vermelho bufados pelo uso. Livro na mão. Título imperceptível a quem o observasse pela janela. Evitava ser visto. Livros, universo naquele lugarejo, longe dos caminhos maiores que traçara para si mundo afora. Ninguém estranho o conhecia. Nome italiano, desconhecido. Pra quê, se nascido nestes rincões, sofrendo e vivendo igual a toda a gente? Se alguém perguntava: - Florêncio – respondia. Sertanejo do Crato, devoto de Padre Cícero. Conversa pouca, frases curtas. Monossilábicas. Mais sim e não. Às vezes adormecia, perdia-se em quimeras. As listras da lona em arco-íris, cada faixa de cor um caminho; vários levando aos diferentes pontos da imaginação. Estradas perfeitas, trânsito livre, para libertários. Nelas não transitavam quixotes. Ele o Quixote. Distante, no entanto, de Cervantes. Utopia realizada concretamente. Ora na cidade, ora no campo. Todos iguais, dividindo os meios de produção sob controle comum. Não de um, ou de poucos. Mas de todos. Miséria nenhuma. Nem riqueza acumulada em mãos reduzidas. Distribui-se o que o campo e as fábricas fecundam. Filhos que nascem gerando novos filhos... indefinidamente. Ele supervisando, apenas com o olhar, a imensidão de abundância. Crianças sadias, de todos os matizes, felizes, brincam em torno do colhido por todos os adultos. Saem para as escolas em meio aos parques. O riso infantil abunda no sonho. Sons inexistentes nas harmonias terrenas, compreensíveis e decodificados por anjos maestros que surgem em nuvens. Encaminhando com a sonoridade os rumos da história que aprendem. A que vivem, constroem e escrevem a cada minuto, a cada dia. Registro para o futuro. Lembrar. Como em diários. Permanente dialética. Não há apitos nas fábricas. Há alternância entre morar na fábrica e trabalhar em casa. Não por obrigação, mas por satisfação. Não há trabalho, mas atividade humana. Homens plenos. Não maquinismos, mas um organismo vivo. Têm consciência do quê, por quê e para quem realizam. Tudo se torna em alegria. Como entram, saem. Quando convém. Lazer e labor confundem-se, não se distinguem. Sem hora para início ou término. Parte das próprias vidas. Todos libertos de um gênero que destruía atividades. Trabalhar ali faz parte da natureza, da própria atividade humana. A história edificada. Em tudo por que a inteligência humana de fato ansiava. A percepção de si, sélfica. E orgulhosos disto aprenderam a não ter propriedades, tampouco acumular o resultado do trabalho. Muito menos apropriados por valores que não os da existência do homem simplesmente homem; objetivo e razão de ser, nunca objeto. Não havia “donos”, palavra abolida do cotidiano, existente apenas para expressar os vícios de antiga ordem, lembrada como lenda, de tempos imemoriais de horror contra os povos, inacreditável. Ficção de escritores, para mostrar o que não devia existir, em lições de ética. O ato de produzir é a própria atividade do trabalhador humanamente vivenciada, partilhada, e não mais objeto estranho que domina o homem. Para quem o vir na modorna, o verá sorrindo, feliz, realizado, dever cumprido. Pousado em terras paradisíacas. Somente elas alimentariam aquela alegria. Continua passeando o olhar que o transporta onipresente por todos os lugares, no gáudio de realizar a esperança de humanidade. Não há pobreza, propriedade, burocracia, prisões, governo e polícia. Laços sociais os da fraternidade. Agora não mais os adultos a trabalhar. Todos crianças. As fábricas e os campos tornam-se parques. E a cada riso surgem mais alimentos, mais máquinas, mais riqueza. Homens e crianças, sob um allegro de Vivaldi, dão-se as mãos para uma cantiga-de-roda imensa, que circunda várias vezes a terra. Até cobri-la completamente, em inimaginável arco-íris. De repente uma voz destoa na harmonia imensurável: “tenha dó, meu senhor, esmola pro cego que não tem o que comer”. Param. Na obrigação de manter a ordem em sua fantasia, volta-se para o destoante. Fixa-o. Descobre-o esquelético, invasor. Cadáver ambulante chacoalhando ossos, regendo sinfonia aterradora, de tempos antigos, quando os homens ruins se exploravam, a minoria tirando proveito da maioria. Ferindo os tímpanos. Inferno. Dantesco. Acorda em pesadelo, suando a cântaros. Defronta-se com a realidade. Na janela, a mão adulta trazida pela criança esfarrapada e suja, a voz nascida das profundezas da terra, espera a caridade do semelhante para manter-se viva. Depara-se com o anti-sonho, negação da vida. Encontra-se Florêncio. Vão-se, recolhidos por apocalíptico redemoinho, fábricas, campos, escolas, parques, adultos-crianças, crianças-adultos, alimentos, a imensa cantiga de roda, o homem humanidade. Descobre-se Quixote, o de Cervantes, derrubado por imenso moinho. O mesmo... De há muito conhecido. Olhar longe; não percebe o afastamento do pedinte, se atendido. Aprofunda-se na distância interior, olhar desperto, visão nenhuma. Retoma o livro. Deixa-o resvalar ao reiniciar a leitura. Medita sobre o lugarejo que o acolhe. Igual aos grandes centros que conhece. Aqui ausente um proletariado que assim se chame. Miséria igual. Precisa continuar Florêncio. Nada de Giocondo... Dias não se acabem nunca. Levanta-se, lento. Fecha a espreguiçadeira. Encosta-a na parede. Entardece. Névoa rala ameaça a tarde mutante. Já caminhando o acendedor de lampiões, imagem de outra utopia inconscientemente mecânica. A de fazer brilhar a cidade com as luzes feitas pelo homem.
Tantos anos passados. Chega do mesmo jeito. Florêncio. Do Crato. Devoto do Padre Cícero. Duas décadas repetindo sonhos. Cabeça algodoando. Apenas os mais antigos, poucos, têm vaga lembrança da última pousada. O cirandar tomando o sistema solar. Mundos verdejantes descobertos e construídos. Crianças que se tornaram adultos repetem a experiência da história registrada em diários escritos minuto a minuto, dia a dia, vida a vida. Para que os do futuro não os esqueça, não deixem de repetir a ciranda cantada, angelicalmente regida, que ocupou orbes distantes. Alguns sob signo da luta. No entanto, nestes mais de vinte anos ainda acorda em pesadelo. Dista o tempo em que os homens se regem pelas regras da consciência moral. Fuga permanente. Vida de nenhuma paz. Assistindo a escravidão humana a valores que negam o homem. Deixando a Crato do devaneio para buscar Bom Jesus da Lapa, pousa na terrinha que o acolhera antes. Vendo os mesmos moinhos derrubá-lo. Às vezes em tombos terríveis... Como os de quase vinte anos. Repetido agora. Acolhe-o, outra vez, o irmão Lourinho, o da farmácia, quando não perde a identidade de comerciante para a de marido da professora Letícia.
Descobrira-o. Adquiriu confiança. Ouvia as histórias sonhadas. Nova era em cantos do planeta. Luzes para suas idéias, antes sustentadas apenas no que vira e ouvira, de forma desencontrada, sobre a história dos que passaram pela terra natal no dia em que nascera, no deságüe do movimento liderado pelo jovem magro, de barba desalinhada que estivera em Monte Alegre. Encanta-se não somente com o que descobre naquele maravilhoso sonhador. Idealista. Humanista. Mas, também, com a sobrinha, uma gracinha de mulher despertando para os corações masculinos. Talvez não para o dele, velho para a menina. À procura dela descobriu o tio. Agradecia. O presente dele – um número da Estética – embalou os sonhos nos anos seguintes.